Reportagem Super Bock Super Rock 2016
Super Bock Super Rock: Cidade do rock, do indie e do hip hop
É estranha esta encarnação do Super Bock Super Rock. Levar assim um festival para fora do pó, das tendas, do calor e das latrinas mal lavadas... trazê-lo até à cidade e às ruas, aos edifícios e à "civilização".
Mas é mesmo isso que acontece há dois anos, em Lisboa. E não é necessariamente mau. Do conforto dos amplos lugares do Meo Arena, à vista desafogada do rio, sob a proteção da pala do Pavilhão de Portugal, os palcos que compõem o SBSR servem todos os gostos e propósitos e enchem as medidas dos festivaleiros. Porque ainda é deles que se fala (apesar da falta de pó).
Primeiro Dia e o Indie fala mais alto | Fotos
As setlists ajudam a esquecer as ofertas à la Rock in Rio que ladeiam os espaços de música e começamos com chave de ouro... e em dupla. Lucius, que é como quem diz "as gémeas loiras de Nova Iorque" (que não são gémeas), foram a primeira surpresa do festival durante a sua estreia por terras lusas.
Com um pop envolvente e ritmo afinado, começaram tarde mas depressa recuperaram o público expectante (e muito curioso). A "weirdness" da indumentária deu lugar a alguma devoção. A sincronia entre Jess Wolfe e Holly Laessig hipnotiza e o som faz o resto. Para ouvir mais umas quantas vezes nestas noites de verão.
Pausa para a Imperial e estamos de volta ao mesmo palco, à beira rio plantado, para ouvir os Villagers. Se o nome não podia destoar mais do contexto urbanístico, o certo é que a folk destes irlandeses, de regresso ao nosso país, não podia ter casado melhor com o final de dia que se desenhava. "Where Have You Been All My Life?" era o álbum que nos chegava do palco, ao jeito de pergunta retórica, mas a que o público soube responder entusiasticamente. Conor O'Brien e companhia pareceram agradados com a receção.
E, de repente, já era tempo de rumar ao palco principal. Lá nos esperavam os Temper Trap, de regresso a Portugal após uma notada ausência de seis anos. A banda, pouco dada a palcos tão imponentes, respondeu bem ao desafio e fez deslizar o novo "Thick as Thieves" pelo recinto fechado, trazendo um pouco da Austrália indígena até à Europa. O que também ecoava pelo espaço era o coro incessante de apoiantes da vitória portuguesa no Euro 2016 que começou, inocentemente, a ganhar tração (e que, pelo terceiro dia, já irritava)... e levou mesmo a banda a agradecer "aos campeões da Europa" pela receção calorosa. Pelo meio, "Love Lost", "Rabbit Hole" e o incontornável "Sweet Disposition" satisfizeram os mais saudosistas.
Começava a correria entre palcos... ou do outro lado não estivesse Kurt Ville, a provar que ele, os seus cabelos e o seu banjo mereciam um palco maior e mais tempo de "antena". De Philadélphia para o mundo, a guitarra comanda a alma e culmina em apoteose com o inevitável (e americanão) "Pretty Pimpin". Kurt sai demasiado cedo do palco mas, antes disso, consegue provar que o rock ainda tem muitas encarnações para viver... E que faz sentido metê-lo a "abrir" para The National, que já começam a rolar lá do outro lado.
É para lá que voltamos. Afinal, todos os caminhos vão mesmo dar a Matt Berninger. Enquanto lá fora o mundo voltava a mudar, lá dentro seguíamos, alheios a tudo, embalados na inocência pelo sublime concerto dos The National.
Gloriosos, provaram que são cada vez mais nacionais e o público presente no Meo Arena espelhava essa conquista, cantando todas as letras como se este fosse o derradeiro concerto da banda por cá (e eles não viessem cá com uma frequência bastante saudável). Sem sobressaltos, Matt foi levando os presentes ao rubro, preparando o caminho para “Vanderlyle Crybaby Geeks” e a sua atabalhoada e apoteótica incursão pela multidão em delírio.
A noite terminaria com Disclosure a fechar o ciclo indie e a iniciar a dança. Nesse capítulo, os irmãos Guy e Howard Lawrence também já são habitués dos palcos lusitanos, mas não deixaram os créditos assentes no passado e trouxeram surpresas: Kwabs (também no cartaz) e Brendan Reilly emprestaram a voz e fizeram esquecer os problemas técnicos que assombraram parte da atuação que encerrou as hostilidades do primeiro dia no principal palco desde Super Bock Super Rock.
Segundo dia e há cheiro a old school | Fotos
A segunda noite só não começou com uma estreia por palcos portugueses porque Kwabs deu uma perninha na noite anterior na atuação dos Disclosure. Agora em versão prolongada, o britânico deu ao final de tarde desta sexta-feira outro brilho e outra alma ao palco EDP. Do Pop ao soul, o também ganês sentiu-se capaz de tudo para encantar os portugueses, até de arriscar uma reinterpretação de uma canção de Justin Bieber. "Love Yourself", ao contrário do que poderia ser esperado, foi cantado em uníssono entre o artista e os seus "back vocals", o público. Kwabs fechou as surpresas com o esperado "Walk".
Muitos, no entanto, perderam o momento... e a culpa é dos Bloc Party que, qual fénix renascida, pousaram no palco do Meo Arena para abrir o recinto. Mornos, mas competentes, faltou ao grupo o brilho de outros tempos (e outros integrantes). Para adivinhar os momentos mais marcantes desta atuação, quase que mais valia ir ao Google e pesquisar pelos êxitos da banda... Estiveram lá todos: "Banquet", "Helicopter" e até "Hunting for Witches".
Mas viremo-nos para outras andanças e outros ritmos, com os Rhye a dar espetáculo no palco secundário. Num concerto mirrado pela competição feroz de Iggy Pop no palco principal, a atuação de Mike Milosh e Robin Hannibal ficaria, porventura, mais bem situada no terceiro dia do festival, mas serviu para pontuar de forma divertida e descontraída a presença do R&B neste certame.
Não conseguiram, mesmo assim, ofuscar a estrela maior desta constelação musical. Do alto dos seus quase 70 anos, Iggy Pop invadiu o Meo Arena e, irrequieto, não deu descanso aos festivaleiros bem mais jovens do que ele. A eterna pulga saltitante do rock encheu as medidas a quem lá foi só para o ver e não desiludiu os maiores amantes desta tão nobre forma de som. Destaque natural para "Lust for Life", perfeita síntese do que se vê a sair da boca (e de cada gota de suor) do corpo moído mas muito vivo da lenda Iggy Pop.
Do old school passamos para a nova escola, mas com a mesma irreverência a pontuar mais um espetáculo estranho, mas memorável. Mac DeMarco, canadiano simpático e brincalhão, não se cansou de interagir com o público e mostrou que a pop não precisa de ser só refrões sem açúcar ("Salad Days" é a prova máxima disso). Entre baladas e autênticos hinos aos sintetizadores, fica no ar a ideia de que o hilariante (e pinchante) Mac DeMarco faria Iggy Pop muito orgulhoso.
Depois da pausa para o recreio, voltamos aos assuntos de graúdos no Meo Arena. Do exato oposto do espectro figuravam os Massive Attack, muito menos brincalhões e muito mais reivindicativos. Os anunciados Young Fathers juntaram-se ao grupo para quatro canções, mas a noite foi mesmo dos britânicos, que já tinham passado pelo festival em 2014. Mais atuais que nunca, meteram a mão na consciência coletiva e fizeram perguntas difíceis. O público ficou para responder e não arredou pé perante o ataque cru a que foi sujeito. Num espetáculo dedicado "às vítimas do trágico e incompreensível ataque em Nice", levamos um murro no estômago e ficamos para ouvir mais. Saímos de lá mudados.
Terceiro dia e liberta-se o hip hop | Fotos
And now for something completely different... O derradeiro dia do Super Bock Super Rock deste ano foi Kendrick Lamar e pouco mais, mas houve quem conseguisse marcar posição numa noite em que se fazia fila à porta só com um objetivo em mente.
Kelela deu o mote a dançar e entregou-se ao R&B meio eletrónico para começar a aquecer os pés dos presentes. Já os Fidlar, que continuaram no mesmo palco, o EDP, bem que pareciam "trocados" com os Rhye, destoantes no dia anterior. O seu garage punk encaixava que nem uma luva num dia com Iggy Pop, mas acabou por ser um oásis de irreverência rock num dia tão predominantemente hip-hopper.
Mas vamos ao que realmente interessa: a noite começou no Meo Arena ao som dos portugueses Orelha Negra, que conseguiram reunir uma impressionante massa em frente ao palco (e nem todos estavam só a guardar lugar para o que se avizinhava). Aplaudidos convenientemente por um recinto que se ia enchendo, faltou voz (literalmente) para encher a abertura do palco principal. Um projeto com muito mérito mas que, pela sua essência instrumental, resultaria melhor no palco secundário. Levam, no entanto, para casa a medalha de única formação portuguesa a subir ao palco principal do festival.
Já os De La Soul desiludiram por outros motivos... Num dia em que há uma estrela sem rival no cartaz, com uma mensagem poderosíssima, colocar um grupo típico de Mc's norte-americanos, praticamente desconhecidos em Portugal, a preparar as hostes para a reivindicação de luta de Lamar foi um tiro no pé... Valeu para guardar um bom lugar para a maior enchente do festival e pela recordação da colaboração dos De La Soul com os Gorillaz.
Finalmente, e qual avalanche, eis que surge Kendrick Lamar. Do alto da sua simples camisola de flanela, o norte-americano era todo ele poder, luta, força e paixão. "Look Both Ways Before You Cross My Mind" serviu de slogan e, desde o primeiro minuto, a loucura estava instalada. A um ritmo alucinante, a maior estrela do cartaz deste ano foi justificando (como se dúvidas houvesse) a lotação esgotada deste terceiro dia. Se fossem necessários destaques num espetáculo que merecia ser totalmente destacado, esses talvez assentassem em momentos como "Bitch, Don't Kill My Vibe", "I Love Myself", "For Free", "Alright", "Swimming Pools" ou "To Pimp a Butterfly" (nome do álbum que o elevou ao céu).
O rapper mais influente do momento não se fez rogado perante tamanha demonstração de afeto e loucura e desfiou histórias e morais ao jeito de "gospel" a ter em conta na hora da redenção. Político, controverso, sem desculpas, é assim o discurso de Lamar, em perfeita sintonia com o caos mundial e com a crise racial que se vive nos EUA, bem como com o público que o venera. Se havia naquele recinto algum curioso mais desconhecedor do K-Dot, saiu do Meo Arena, certamente, convertido.
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Organização:Música no Coração
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quarta-feira, 04 dezembro 2024