Reportagem Vodafone Paredes de Coura 2023
Corria o ano de 1993 quando o Festival de Paredes de Coura surgiu pela primeira vez. Logo aí, no seu nascimento, que o festival foi banhado de muito amor, ou não fosse fruto da forte amizade de um grupo de amigos. Desde então, esse sentimento núcleo foi crescendo e crescendo para celebrar, em 2023, os seus 30 anos. Para celebrar tal feito, a acarinhada aldeia do norte do país acolheu milhares e milhares de festivaleiros que, por terem crescido com o próprio festival, não puderam deixar escapar a ocasião de soprar as velas. Detentor do título de ‘festival mais duradouro a acontecer interruptamente em Portugal’, muitas são as histórias e as recordações que se foram criando com o passar de cada edição. E talvez por isso é que seja tão difícil encontrar alguém que não seja ou repetente de um ano anterior ou um estreante que não queira regressar no ano seguinte.
Para 2023, o Vodafone Paredes de Coura não se aprumou no seu melhor vestido de gala, nem assinou cerimónias especiais alusivas a um aniversário tão importante. Mas também, não tinha de fazer, pois quem carinhosamente apelida este festival de ‘Couraíso’, sabe que todas as edições, só por si, já são de celebração. E para este ano, as festividades começaram logo bem cedo, com o 16 de agosto a oferecer festa pela noite dentro.
Na liderança do pelotão de festas do primeiro dia do festival esteve Jessie Ware. Através do seu mais recente That! Feels Good!, a britânica pôs de lado o R&B e soul que a deram a conhecer para abraçar um registo mais voltado para o disco, com a energia das mais recentes canções da artista a soarem eletrizantes em palco. Apresentando-se em registo de banda e na companhia de bailarinos, o festim de Jessie Ware fez-se na companhia de “Spotlight” e de “Soul Control”, passando também pelas mais recentes “Pearls”, “Freak Me Now” e a mui aplaudida “Free Yourself”, assinando um concerto que deixou a energia de Paredes de Coura a borbulhar para o que ainda estaria para vir nos dias seguintes.
Continuando a tendência em ter um projeto de música eletrónica para encerrar o palco principal num dos dias do festival, competiu aos Bicep essa vaga para o ano de 2023. Apesar das exímias melodias eletrónicas produzidas pela dupla irlandesa, muitas das quais capazes de nos transportar para outros mundos, tanto o jogo de luzes como de vídeo utilizados começaram demasiado minimalistas, o que gerou alguma dificuldade em reter a atenção dos menos investidos e, consequentemente, ameaçou debandada. Porém, com o passar de cada tema, essas mesmas luzes e vídeo iam-se intensificando sucessivamente até ao ponto de se tornarem intrínsecas a cada canção, como foram nos casos de “Glue”, “Apricots” ou “Water”. Mesmo com um arranque com o seu quê de turbulência, os Bicep assinaram uma atuação em crescendo, passando depois o testemunho a Special Interest e Nuno Lopes para acompanharem todos aqueles que quiseram fazer a festa, no Palco Yorn, ao longo da madrugada.
De certo modo, o alinhamento do segundo dia do Vodafone Paredes de Coura ilustrava uma das fórmulas de sucesso deste festival: uma vasta variedade de artistas, de emergentes a consagrados, separados pelos mais diversos estilos; em Paredes de Coura, há espaço para tudo e para todos. No arranque do 17 de agosto, Tim Bernardes conseguiu o feito notável de encher o anfiteatro num horário tão diurno, mas o maior feito do cantautor brasileiro foi mesmo o de impor um silêncio enternecedor perante espaço tão amplo. Durante uma hora, o vocalista d’O Terno apresentou um emotivo cancioneiro que gerou muitas alergias pelos olhos da extensa plateia, com os temas do seu disco a solo Recomeçar a oferecerem um aconchegante serão de final de tarde.
Nesse mesmo palco, e umas horas depois, o serão indie rock ficou encarregue aos The Walkmen. Depois de uma pausa de dez anos, a banda nova iorquina marcou o regresso ao ativo com uma tournée de celebração, com Paredes de Coura a constar no mapa. Mesmo com um alinhamento em jeito de best of e com muita boa disposição entre canções, foi difícil para os The Walkmen romper pela reticência de um público em muito desconhecedor do seu trabalho, salvo as exceções em “The Rat” e “Heaven”, que arrancaram alguns picos de energia.
Melhor sorte em contar com o público como seu aliado esteve Loyle Carner, isto no seu regresso a Portugal após a estreia pelo NOS Alive. Através de um registo hip hop que bebe de influências oriundas do jazz, o artista britânico foi conquistando a plateia de Paredes de Coura com o flow e o groove das canções, contando com o apoio de uma irrepreensível banda para ajudar à festa. Como se os temas de Carner só por si já não fossem suficientes para conquistar o público, as facetas mais íntimas sobre si que ia revelando entre canções foi solidificando a relação de amizade e admiração que se estabelecia entre ambas as partes, e quando o britânico abandonou o palco, e isto após uma dedicação acapella para o irmão, poucos foram aqueles que ficaram indiferentes a Loyle Carner.
Depois de ter encabeçado, em 2012, o festival com os seus The Knife, Karin Dreijer regressou a Paredes de Coura, desta feita com o seu projeto a solo, Fever Ray. Com o seu mais recente Radical Romantics, Karin dá continuidade ao seu experimentalismo com a pop e a eletrónica, chegando a um registo muito próprio e sem graus de comparação. E durante uma hora e picos, permitiu que Paredes de Coura entrasse no seu íntimo e vislumbrasse como é o mundo de Fever Ray, isto através de uma performance cénica, com direito a irreverência nos adereços e nas maquilhagens, mas onde a eletrizante banda sonora – “To the Moon and Back”, “Shiver” ou “If I Had a Heart” – foi sempre o principal ponto turístico.
Do folk ao hip-hop, ou da eletrónica ao indie rock, o cardápio foi vasto no que dizia respeito à musicalidade do segundo dia do Vodafone Paredes de Coura. Para o dia de 17 de agosto, a tendência manteve-se, e foi na companhia dos Kokoroko que se ouviram os primeiros sons que tão bem ecoam pelo habitat natural da música. Grupo de oito que tem na trompetista Sheila Maurice-Grey a chefia, a banda toca concilia o jazz com o afrobeat para produzir uma sonoridade que tanto purifica o espírito como convida o corpo a soltar-se e deixar-se levar por estes ritmos contagiantes. Por entre pezinhos de dança comandados pelo coração, muitos foram os festivaleiros que sorriram ao som de canções como “Abusey Junction” e desfrutaram de uma relaxante final de tarde que só pecou pelo nublado que teimou em não abandonar.
Quando se junta um prodígio a outro, o céu é o limite no que toca aos feitos possíveis de alcançar por parte de ambos. E os Domi & JD Beck romperam pelo céu cinzento de Paredes de Coura para serem, possivelmente, a grande surpresa do festival. Na falta de melhores palavras, Domi Louna e JD Beck são dois jovens aliens, ou não fosse o talento de ambos tão desmedido que nos leva a crer ser impensável que sejam deste planeta. Nascidos neste milénio, os dois prodígios tocam com uma destreza e complexidade que muita gente grande ambicionava em ter uma fatia de tanto talento, tocando os seus respetivos, teclados e bateria, de forma exímia. Com o jazz fusion da dupla a revelar nítidas influências de hip hop, o ambiente dançável previamente estabelecido pelos Kokoroko teve direito a continuidade com Domi & JD Beck, com o swing de cada baqueta ou as melodias dos teclados a puxar por um público que ia ficando cada vez mais investido e impressionado com a maturidade e solidez de cada canção.
Depois do ascendente de concertos com Kokoroko e Domi & JD Beck, o rapper Yung Lean fez a sua estreia por Portugal e, infelizmente, borraria também uma pintura que tão bela se compunha. Escondido por entre o fumo que transbordava em palco, o sueco apresentou-se em registo minimalista e sozinho, apenas acompanhado pelo backplay dos seus temas. E apesar de um alinhamento extenso, o mesmo só causou impacto junto dos fãs de Yung Lean ou das camadas mais jovens e que se predispunham a abrir um mosh se o tema acusasse barafunda. Para os restantes, nunca a hora do jantar veio em tão bom timing.
Se as nuvens vieram a acusar uma manifestação ao longo de todo o dia, pouco faltava para os Black Midi subirem a palco para que a chuva chegasse com força e peso a Paredes de Coura. Mesmo em condições tão adversas, o grupo britânico não foi de modas e soltou-se rapidamente por entre o seu rock experimental para justificar aos presentes que aquela molha valeria a pena. Efetivamente, o rock acelerado e frenético dos Black Midi, muito dado a improvisos cativantes quando tocado ao vivo, ia fazendo as delícias daquelas que se entravam junto das grades e até à régie, quase conseguindo a proza de fazer esquecer o desabamento que vinha do céu. Mas para os restantes, a chuva era tão intensa que não houve forma de contornar o inevitável e procurar abrigo o mais rapidamente possível. E para muita pena nossa, esse abrigo viria a ser já fora do festival.
Após a chuva do dia anterior, que causou muitos estragos pelo campismo, o último dia desta edição de Paredes de Coura começou de arranque a meio gás, ou não tivesse o mau tempo dominado grande parte da manhã e da tarde do 19 de agosto. Felizmente, e para além da boa disposição que já lhes é característica, os repetentes Sleaford Mods romperam por entre as nuvens e trouxeram consigo o sol de volta para o Vodafone Paredes de Coura. O post punk minimalista da dupla de Notthingham é já uma velha conhecida por este festival, e tal como em todas as outras ocasiões, deixa sempre as engrenagens dos festivaleiros bem acesas para aquilo que ainda estará para vir para o resto do dia do festival.
O post rock em Paredes de Coura foi, durante muitos anos, uma aposta segura e de sucesso. Quando se tem um festival com uma paisagem tão idílica, e ao qual se junta uma respeitadora tribo de festivaleiros, esta vertente instrumental do rock tem tudo para singrar, e assim o foi em 2023 com os Explosions In The Sky. Ainda dormentes com os efeitos pós-pandemia, o quarteto de Texas tem regressado lentamente aos palcos, mas para a ocasião, tocaram na íntegra The Earth Is Not a Cold Dead Place, disco que celebra 20 anos. Perante um disco tão icónico e que deu origem a canções tão ilustres como “The Only Moment We Were Alone” ou “Your Hand In Mine”, o anfiteatro de Coura silenciou-se para escutar todos os temas que compõem o álbum, com a meticulosidade de cada uma dessas interpretações a soarem tal e qual como o seu registo físico.
Se, por um lado, houve repetentes ou recordações de géneros musicais que tanto sucesso já fizeram por Paredes de Coura, a edição dos 30 anos do festival trouxe também um dos headliners que menos consenso reuniu: Lorde. Quando, com os seus 16 anos, explodiu para o estrelato com “Royals”, a neozelandesa foi automaticamente rotulada com mil e um dísticos pop que viram a esvoaçar com Melodrama, onde apostou num eletropop intimista ou com o mais recente Solar Power, em que abraça contornos mais folk; segundo Lorde, este disco representa o sol e a positividade. Em suma, enquanto as luzes da ribalta lhe indicaram o caminho mais fácil, a jovem escolheu o seu próprio caminho e construiu a carreira que a própria idealizou.
Em prol de uma breve tournée que teria o propósito de encerrar o ciclo iniciado em Solar Power, Paredes de Coura – ou ‘Porto’, como tanta vez insistiu durante o concerto, com muito olhar de desdém de todos que percebem de geografia – foi o último concerto da dita, o que gerava uma onda de antecipação antes da subida de Lorde a palco. E mal a neozelandesa o fez, fê-lo na companhia de “Royals”, não só para provar que o seu repertório já é rico o suficiente ao ponto de se dar ao luxo de começar com a sua principal canção, mas como também de tentar converter os muito céticos para a sua presença. Apesar da dificuldade de sucesso nesta última tarefa, a de ficar com o restante público na sua mão foi logo cumprida, e ao recorrer a canções como “Solar Power”, “Magnets” ou “Tennis Court”, dali não sairiam.
Comparativamente às suas anteriores passagens por Portugal, o espectáculo de Lorde foi muito mais minimalista do que já nos apresentou, contando apenas com dois músicos escondidos pelas diferentes fitas que decoravam o palco. Apesar da tournée ser referente a um disco que representa o ‘lado bom da vida’, a escassez de temas do próprio álbum deixava no ar uma ideia de incongruência, especialmente face aos sucessivos temas de Melodrama que ia aparecendo no alinhamento. Foi preciso esperar pelo emotivo discurso de “Liability”, a canção de Lorde para os corações partidos, para a própria revelar que batalhava com problemas pessoais e que era o calor de um público de Paredes de Coura que lhe dava forças para continuar. Perante desabafo tão vulnerável, o público que outrora estava na sua mão, passou antes a estender-lhe a sua para que assim, já ambos de mãos dadas, juntos enfrentassem os sítios negros que tanta vez nos abrigam por demasiado tempo.
Entre novas canções, como “Silver Moon” e “Invisible Ink”, ou recorrendo a temas fortes do passado, com “Ribs” a ser o principal destaque, Lorde fez por assinar uma noite memorável aos muitos fãs que ansiavam pelo seu regresso, mas para derradeiro concerto dos 30 anos de um festival como Paredes de Coura, pedia-se um final com maior impacto, outro tipo de concerto. E mesmo com “Green Light”, a derradeira canção a ecoar pelo palco principal, a puxar que fosse celebrada aos saltos e em festa, nem todos foram nessa cantiga. Para esses, e para todos os outros que gostariam de celebrar uma última vez naquele palco, houve ainda tempo para a tão aguardada montagem do melhor que aconteceu em 2023, com a “All My Friends” dos LCD Soundsystem a dar como música de fundo, como já não poderia deixar de ser.
O Vodafone Paredes de Coura regressa em 2024, nos dias 14 a 17 de agosto.
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quarta-feira, 04 dezembro 2024