Reportagem Super Bock Super Rock 2023
Após a atribulada e hercúlea edição do ano passado, com mudanças de localização em cima do joelho devido a um elevado risco de incêndios, o Super Bock Super Rock regressou ao Meco. Deixando para trás o conforto da cidade, o festival mais nómada de Portugal voltou para uma casa que tão bem conhece e onde tão bons concertos já albergou. Para este ano de 2023, muita foi a música que passou pela Herdade da Cabeço da Flauta, com Franz Ferdinand, The Offspring, Wu-Tang Club, The 1975, Steve Lacy ou Kaytranada a serem alguns dos principais pontos de passagem.
A 13 de julho, dia de arranque do festival, o encontro estava marcado com a primeira de uma das mais sonantes estreias desta edição do Super Bock Super: 070 Shake, nome artístico de Danielle Balbuena. Ou pelo menos, assim o era no papel. Depois do burburinho causado pelos seus dois álbuns, muito por culpa da interessante junção entre o psicadélico com o R&B, havia antecipação em acolher a norte-americana pela primeira vez em Portugal, mas acabou por ser uma visita de 40 minutos em modo piloto. Sem qualquer interação para com o público, o desfile de canções apresentado por Balbuena pouco pó levantou no Meco, salvas raras exceções como “Guilty Conscience” ou “Nice To Have”, esta à boleia da versão de Fred Again.., a proporcionarem algum ponto de interesse num serão de auto-tune em demasia.
Depois da falsa partida no Palco Pull & Bear, foi no palco principal que aguardava o comité de boas-vindas, e logo protagonizado por velhos amigos do nosso público. Em noite que se perfez as três mãos cheias de passagens por Portugal, a bela história entre o nosso país e os Franz Ferdinand conheceu um novo capítulo, com o mesmo a ser escrito por entre linhas de festividade contagiante. Com o arranque através da eficaz dupla de “The Dark of the Matinée” e “No You Girls”, pouco demorou até que a banda escocesa juntasse uma considerável multidão que demonstrou estar sedenta por celebrar ao som dos êxitos do passado. Em noite de alinhamento greatest hits, o homónimo disco de estreia e You Could Have It So Much Better foram os dois discos mais representados, sendo a estes pertencentes os maiores momentos de euforia como “Do You Want To”, a cantoria uníssona de “Take Me Out” e “This Fire”, esta a culminar mais um eletrizante concerto dos Franz Ferdinand, mas no qual onde também se sentiu a falta da pujança dos tempos em que Nick McCarthy e Paul Thomson ainda integravam a banda.
Com pior sorte, pelo menos no que à comunhão com o público disse respeito, estiveram os Black Country, New Road, protagonistas de um dos melhores discos lançados em 2022, ano também marcado pela saída do vocalista Isaac Wood da banda. Ainda na ressaca da perda da principal cara deste projeto britânico, a banda está lentamente a reerguer-se, o que no, no Super Bock Super Rock, foi sinónimo de um alinhamento repleto de novas canções, nas quais o microfone foi alternando entre Tyler Hyde, Lewis Evans e May Kershaw. Todavia, a aposta em canções que, na sua forte maioria, ainda são do desconhecimento do grande público, a par do novo registo mais orientado para o rock experimental que as caracteriza, levou a um desinteresse (e desrespeito) por parte de quem não tinha a lição bem estudada. Donos de uma sonoridade na qual se exige total entrega para a devida apreciação, o burburinho de fundo dificultou essa tarefa aos fãs e aos curiosos de Black Country, New Road, com as sinfonias por onde se ouviram banjos, clarinetes, flautas ou violinos a perderem-se pela multidão.
Inicialmente prevista para tocar no mesmo horário que os The Offspring, Róisín Murphy beneficiou da alteração nas horas para tocar para uma considerável enchente no Palco Sommersby. Entre um desfile de outfits exuberantes e canções do seu próximo disco, Hit Parade, Murphy deu um espetáculo envolvente e no qual beneficiou da excelente acústica no novo palco mais orientado para as sonoridades de clubbing. Claro está, e como não poderia deixar de ser, houve tempo para resgatar a sedutora “Sing It Back” dos tempos de Moloko naturalmente a canção mais aplaudida da noite.
Já longe do hype que o acompanhou durante e no pós I Love You, Honeybear, Father John Misty foi construindo um dos mais sólidos repertórios românticos dentro da comunidade indie folk. Com honras de fecho do Palco Pull & Bear, a expetativa era a de um foco no mais recente Chloe and the Next 20th Century, lançado o ano passado, mas foi através do icónico segundo disco e do terceiro God’s Favorite Customer que se fez a missa de Father John Misty, e muitos foram os peregrinos que não quiseram faltar. Oscilando entre a ternura e a paixão de “Nancy From Now On” e “Chateau Lobby #4”, mas não esquecendo a ginga de “Date Night” ou “Mr. Tillman”, Joshua encheu o palco com a sua persona de frontman carismática e irreverente, sempre apoiado por uma irrepreensível banda na qual até instrumentos de sopro não faltaram. Muito comunicativo, como já lhe é hábito, os elogios ao público português foram múltiplos e sentidos, quase tanto como a emoção colocada em cada verso de “I Love You, Honeybear”, a invocar uma lágrima no canto do olho dos mais apaixonados, que viria a anteceder ao ponto final com “The Ideal Husband”, numa despedida que contou com o próprio Father John Misty a pregar salmos junto às grades do palco secundário, para o delírio de todos os convertidos.
Dia 14
Entre os três dias do Super Bock Super Rock, o segundo destacava-se pela heterogeneidade de estilos musicais que subiriam pelos diferentes palcos do recinto. Com música para todos os gostos, a abundância de vestimentas alusivas ao logótipo dos Wu-Tang Clan não deixavam margem para dúvidas que o icónico grupo de hip-hop seriam o nome a reunir maior expetativa por parte dos festivaleiros. Mas antes disso, o aquecimento ficou cargo de outro ícone.
Desde os anos 70 que Nile Rodgers demonstra ter nascido com um toque de Midas, tornando em ouro tudo aquilo por onde as suas mãos tocam. Seja na companhia dos seus fiéis Chic, ou através das suas múltiplas colaborações e produções, muitas das quais se ouviram pelo Meco – “Like a Virgin” e “Material Girl” (Madonna), “We Are Family” (Sister Sledge) ou “Coming Out” (Diana Ross) - o guitarrista e compositor é uma das maiores referências musicais no ativo, e veio demonstrá-lo ao Meco. Mas, se na teoria, a missão de Rodgers seria aquecer a plateia para Wu-Tang Clan, o norte-americano não só a superou, mas como também assinou um dos grandes concertos desta edição do Super Bock Super Rock.
Ao arrancar com “Le Freak”, um dos principais temas que tem com os Chic, Nile Rodgers deixou bem claro que vinha ao Meco para fazer a festa, e o convite apareceu logo de seguida com “Everybody Dance”. No final das duas canções de arranque e já o público dançava de forma contagiante e de sorrisos nos rostos estampados, não mostrando qualquer sinal de querer abrandar e a transmitir mensagem de que se queria mais. E claro, Rodgers não desapontou e apresentou um vasto leque de êxitos, desde “Let’s Dance” de David Bowie até à mais recente “CUFF IT” com Beyoncé, mas como não poderia deixar de ser, as recordações de Daft Punk ao som de “Lose Yourself to Dance” e “Get Lucky” foram as mais celebradas, esta última num autêntico festim.
Foi preciso esperar pela tournée do 30.º aniversário de Enter the Wu-Tang (36 Chambers) para que os Wu-Tang Clan finalmente se estreassem por Portugal. Proveniente do estatuto que o disco de estreia do coletivo de hip hop alcançou com o passar dos anos, visto por muitos como um marco histórico e influente dentro do género, a antecipação por esta estreia nacional era muito, e a vasta multidão que envergava o icónico “W” amarelo assim o comprava. Durante uma hora e picos, RZA, Raekwon, Ghostface Killah, GZA, Inspectah Deck, U-God, Masta Killa e Cappadonna, os Wu-Tang Clan, tocaram o seu primeiro álbum praticamente na íntegra, isto para uma plateia que esteve sempre na palma das mãos do grupo do início ao fim do concerto. Mesmo fazendo-se acompanhar tanto por uma banda ao vivo como por um DJ para ocasião tão solene, nota para os problemas de som que prejudicaram pontualmente a atuação, mas para todos aqueles que vibravam de entusiamo com a presença deste grupo de heróis, foi só um pequeno detalhe.
Mesmo encurralada entre dois cabeças de cartaz, Sampa the Great fez jus ao nome e mostrou-se gigante, agarrando pelos colarinhos quem saía de Wu-Tang Clan ou pretendia partir para The 1975. Natural da Zâmbia, algo que foi referindo orgulhosamente por múltiplas vezes ao longo das múltiplas interações com o público, a artista conseguiu domar o palco Pull & Bear do início ao fim, tendo na sua companhia uma talentosa banda de apoio que elevou as sonoridades para outro patamar. Autora de um registo de hip hop muito próprio, que bebe de várias influências africanas, Sampa a Portugal para provar que nenhum sonho é pequeno demais mais para se viver, demonstrando o poder da música em perfurar por mares e continentes. E por esse feito, convidou o público a juntar-se a si e a celebrar em “Let Me Be Great”. Por temas como “Energy”, “Final Form” ou “Female”, Sampa The Great não só foi uma agradável surpresa, mas como também assinou uma sólida estreia por terras lusitanas. Agora, é continuar a conquistar o mundo.
Apesar de partilharem do estatuto de headliners com os Wu-Tang Clan, a debandada que se viu no final do concerto dos últimos não previa um grande entusiasmo para com os The 1975. E o cenário de uma plateia muito pouca preenchida mesmo após as primeiras canções, assim o veio a confirmar, ficando mais dispersa com o passar de cada canção ou deambulações de Matty Healy, visivelmente embriagado. Sem a energia, nem o respeito, conquistados anteriormente pelo grupo de hip-hop, o grupo britânico assinou uma atuação frouxa e que de pouco ficará na memória geral, salvo para os fãs mais acérrimos que vibravam nas grades ao som de “Robbers” ou “Somebody Else”.
Foi também na expetativa de acérrimos fãs que se fez o regresso de Caroline Polachek. Com disco novo editado este ano, Desire, I Want To Turn Into You foi o principal mote da noite, sendo tocado praticamente na íntegra, acompanhando assim a viragem para o art pop registada neste seu mais recente trabalho. Por entre teatralidades q.b., rasgadas pela sua voz irrepreensível, e um cenário reminiscente a uma ilha de palmeiras, Polachek convidou o Meco a juntar-se na descoberta da sua ilha em “Welcome To My Island”, levando-o numa emocionante viagem de uma hora que culminaria em “So Hot You’re Hurting My Feelings”, esta última a puxar por um bom serão de pop pela madrugada.
Tal como ficou demonstrado o ano passado na aposta em Jamie xx para fechar o palco principal, a edição de 2023 do Super Bock Super Rock voltou a apostar em outro nome forte da eletrónica para uma das noites do festival, tendo este ano optado pelo techno de Charlotte de Witte. E tal como em 2022, a aposta revelou-se ganhadora, tornando o recinto numa discoteca a céu aberto na qual ninguém quis arredar pé.
DIA 15
Do nu disco ao R&B, passando pelo jazz contemporâneo e ao hip hop, o último dia do Super Bock Super Rock convidava a que o fim fosse feito em festa. Por se tratar de fim-de-semana, o recinto do Super Bock Super Rock já estava bem mais composto do que os restantes dias, isto em horário tão diurno. Para todos os que madrugaram, a recompensa aguardava no palco Super Bock e na companhia dos Ezra Collective.
De regresso ao Meco, o contagiante jazz do quinteto britânico cedo impôs um frenético serão de dança, celebrado em tons de hip hop, soul e até mesmo reggae, benzendo a multidão em jeito de refresco capaz de apaziguar o intenso calor que se sentia naquela altura do dia. Com os próprios Ezra Collective a não resistirem em juntar-se, por várias vezes, ao clima festivo que se fazia pela plateia, inclusive descendo e trepando as grades com os instrumentos atrás para provocar um óbvio delírio pela multidão, o mote estava dado para um dia que ainda estaria para convidar a múltiplos pezinhos de dança.
No trilho dessas pegadas esteve também Kaytranada, de regresso ao Meco quatro anos depois. Se em 2019 o produtor teve a responsabilidade de encerrar o palco principal, este ano competiu-lhe a tarefa de assinar um set de final de tarde capaz de afugentar a frescura das noites de Sesimbra. E para tal, bastou a Louis Celestin recorrer aos principais pontos altos de 99.9%, Bubba e o mais recente Kaytraminé para instaurar um bailarico de verão no qual onde nem Beyoncé ou Rihanna ficaram esquecidas.
Depois do sucesso através de nomes como Kendrick Lamar ou Travis Scott que o Super Bock Super Rock tem tentado replicar a fórmula e acertar num artista de peso para encabeçar o vulgo dia do ‘hip hop’. Para este ano, Steve Lacy foi o destacado, e rapidamente se viu que faltou gabarito ao norte-americano para fazer jus ao estatuto de cabeça de cartaz. De óculos de sol muito dúbios, quase a recordar os de natação, Lacy veio ao Meco para soprar a vela de aniversário de Gemini Rights, segundo disco e que lhe valeu um Grammy. É nesse trabalho que figura o seu mais reconhecido tema, “Bad Habit”, e cujo sucesso pelo TikTok levou a que fosse guardada para o final, como mandam as regras da Praxe. Mas até lá, o desinteresse e a falta de empenho Steve Lacy iam-se tornando cada vez mais evidentes que só mesmo os mais ferrenhos é que aguentariam até ao fim. E com L’Impétrice a começar dentro de momentos no palco ao lado, nem foi preciso pensar duas vezes. Nota negativa ainda para o génio que teve a ideia de esconder a banda de Steve atrás de televisores gigantes.
Proveniente do justo alarido aquando da sua passagem pela última edição do Vodafone Paredes de Coura, não seria descabido dizer que os L’Impératrice eram um dos nomes a reunir maior expetativa por parte do público. Descabido seria esperar por uma noite igual à que se viveu pelo festival do Norte, e que certamente ainda perdura nas melhores recordações da banda francesa. Memórias e comparações à parte, os L’Impératrice voltaram a Portugal para consolidar o seu estatuto como uma das bandas mais acarinhadas pelo público português em memória recente.
Na entrada em palco, saltam à atenção os corações iluminados ao peito e que à medida que vão palpitando mais rápido, segue também em crescendo o barulho do público a saudar as boas-vindas. Já existindo sintonia entre ambas as partes, “Off to the Side”, “Hématome” e “Anomalie Bleue” foram as primeiras canções a dar corda aos muitos corpos que enchiam o palco Pull & Bear, soltando-os pouco depois para que fossem contagiados pelo charmoso nu disco dos L’Impératrice, ora a pedir que, por vezes, fosse dançado e noutras, sentido e apreciado.
Não fossem as genuínas demonstrações de carinho e gratidão a ilibá-los e os franceses bem que poderiam uma máquina, trabalhando de forma exímia graças ao bom funcionamento das suas seis principais peças condutora, sempre irrepreensíveis na transição das suas canções para os palcos. De facto, os L’Impétrice agigantam-se em palco, tornado temas como “Vanille Fraise” ou a cover de “La Piscine” (Hypnolove) em novas experiências, muito mais eletrizantes e frenéticas. Para o fim, e mesmo que tenham sido pouco a acertar com a letra na ponta da língua, “Agitations Tropicales” trouxe consigo felicidade e mais uma mão cheia de boas recordações de um novo serão bem passado na companhia dos L’Impératrice.
E coube a Parov Stelar, projeto eletrónico do austríaco Marcus Füreder com influências de jazz e swing, dar por encerrada a atividade no palco principal. Ao longo de um set que se prolongou noite dentro, e na companhia de um grupo de sopros e de uma eletrizante vocalista que fizeram da interação com o público uma constante, o austríaco gastou as poucas energias que faltavam aos festivaleiros depois de três intensos dias intensos para fazer a festa e assim fechar com chave-de-ouro mais uma edição do Super Bock Super Rock. Para o ano, todos os caminhos voltam a dar ao Meco.
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quarta-feira, 04 dezembro 2024