Ece Canli + Odete
Depois das passagens pelos Açores e por Braga, a colaboração entre Ece Canli e Odete chegou ao Porto para uma apresentação no Understage - o cantinho intimista e com feeling de clube underground que o Rivoli usa para acolher propostas mais “alternativas” e que, por isso mesmo, se revelou o espaço perfeito para este encontro entre duas almas distintas mas compatíveis , unidas pela vontade de desbravar novos caminhos sonoros conscientemente inusitados.
Logo à entrada deparamo-nos com o cenário único deste espetáculo, no qual um palco colocado mesmo no centro da sala, e não ao fundo como é habitual, despertava uma sensação mista de envolvência e estranheza, precisamente por obrigar a um posicionamento diferente do que é habitual: é que se por um lado havia uma maior proximidade - afinal, elas estavam ali no meio de nós - , por outro pairava no ar uma leve sensação de distância por nem sempre as conseguirmos ver bem - sobretudo Odete, notoriamente mais “escondida”, como se desejasse que as atenções no campo visual se focassem antes na sua colega.
Musicalmente, no entanto, nenhuma ficou relegada para segundo plano, com ambas a construírem um imponente puzzle de eletrónica fortemente aventureira. Uma sonoridade em constante viagem, numa infindável exploração das suas próprias possibilidades artísticas, e que parecia querer sempre comunicar algo profundo e espiritual, como se aqueles sons modernos e “avançados” evocassem uma qualquer tradição ancestral (a flauta tranversal de Odete, aliás, acabava por enfatizar esse lado orgânico, bucólico e angelical).
Ao longo da performance escutavam-se sons de pássaros (recriados por Ece na sua sempre extraordinária capacidade vocal e performativa) e outros ruídos da natureza, quase parecendo que, por magia, se tinha aberto um portal para outra dimensão, para uma terra remota e harmoniosa onde inexplicavelmente nos sentíamos em casa. Verdadeira viagem da alma por mundos luminosos numa transcendência revigorante, por vezes carregando consigo uma força descomunal, uma força que arrepiava tanto quanto inspirava. As palavras que ocasionalmente iam sendo proferidas , num registo discursivo que parecia querer abraçar o canto, só tornavam ainda mais claro que tudo isto era uma história a ser contada em tempo real, narrativa verbal e sonora que tentava reinventar e alargar as barreiras de expressão. Mas o mais impressionante foi mesmo a distorção do conceito de temporalidade , o modo como toda aquela aura de ancestralidade emotiva se expressou através de uma eletrónica possante, por vezes disruptiva e sempre altamente futurista - alucinante cruzamento entre Gazelle Twin e Evian Christ, se quisermos “pintar” uma imagem minimamente fiel. É música ambiciosa, disso não restam dúvidas , música que se apresenta igual às mentes que a conceberam: livre e antidogmática.
Ainda assim, no final, tudo isto durou cerca de 40 minutos, o que soube francamente a pouco. Claramente o grande defeito desta performance, que com um bocado mais de tempo teria sido realmente magistral. Ainda assim, como já deu para ver, foi bastante boa e, acima de tudo, constituiu uma amostra de música excitante e genuína que não precisa de guitarras, como defendem os velhos do Restelo e os puristas que tristemente afogam as mágoas em ideias retrógradas. Para quem tiver abertura de espírito, está aqui uma proposta bem interessante…
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quarta-feira, 04 dezembro 2024