Kae Tempest
Depois das passagens por Paredes de Coura (numa atuação assombrosa e inesquecível, convém referir) e pelo Primavera Sound, Kae Tempest regressou a Portugal para um concerto em nome próprio, mais especificamente no M.Ou.Co, um novo espaço portuense que é, ao mesmo tempo, sala e hotel . O objetivo era apresentar os temas da novidade “The Line Is a Curve”, um registo mais contemplativo, enternecedor, extraordinariamente pessoal( trata-se do primeiro gravado após assumir a sua identidade não binária e abandonar o nome Kate) e maravilhosamente delicado, possivelmente o mais bem conseguido (ainda que não nos tenhamos esquecido da obra seminal que é “Let Them Eat Chaos”) de uma carreira ainda curta mas já inegavelmente memorável. E será seguro afirmar que Kae se orgulha bastante deste trabalho, já que fez questão de o interpretar na íntegra, pela ordem em que as faixas se sucedem, depois de ter comunicado um pouco no início e prometido que, a partir daquele momento, as únicas palavras que se ouviriam seriam aquelas apaixonadamente proferidas, como balas que nos perfuram a pele, num spoken word tão poético quanto pujante, apaziguador mas simultaneamente visceral. Com Kae subiu ao palco Clare Uchima, que se ocupou das teclas e sintetizadores - e ,muito raramente, das vozes mais melódicas, em que o canto contracenava com a pujança do spoken word - fornecendo a base instrumental onde as palavras encontravam apoio rítmico aconchegante. Um cenário bem mais “despido” e simples do que aquele que observamos nos concertos anteriores, é um facto, mas não necessariamente menos eficaz. Na verdade, pode-se afirmar que resultou particularmente bem para a sala onde tudo aconteceu - mais pequena e intimista que os festivais de grande dimensão acima mencionados, em que a necessidade de “preencher” o palco se revela sempre desafiante.
Bem menos agradável, por outro lado, foi a atmosfera à nossa volta. Sim, o M.Ou.Co é um espaço muito bonito, dinâmico e aprazível - sobretudo para quem deseja relaxar enquanto toma uma bebida na esplanada- , e a própria sala é interessante e envolvente ( um cruzamento entre o Understage, no Rivoli, e a Sala 2 do Hard Club, de certa forma), mas o barulho das pessoas que lá dentro conversavam, aleatoriamente misturadas com aquelas que se deslocaram para absorver a arte de Kae Tempest, acabou por perturbar quem realmente desejava prestar atenção… E a verdade é que o “ambiente”, como se costuma dizer, é tão importante quanto a qualidade da prestação, pois muitas vezes consegue mesmo dar-lhe aquele toque extra de magia palpável. Aqui, pelo contrário, acabou por representar um aspeto negativo, não ao ponto de a arruinar, pois a música fala sempre mais alto , mas no sentido de retirar alguma da perfeição emocional que poderia ter tido em condições mais favoráveis.
Todavia, nem tudo foi mau, e se nos concentrássemos no grupo de fãs devotos que escutavam atentamente a performance de Kae, tínhamos ali algo bem inspirador e admirável: um concerto íntimo, caloroso, espécie de ritual rejuvenescedor de partilha de energia, música como fonte de união e tábua de salvação coletiva. Tudo isto, claro, conduzido por uma figura fascinante, carismática, e que se lança numa descarga verbal tão genuína e incisiva que chega mesmo a arrepiar.
“Priority Boredom”, a faixa que inicia a mais recente viagem de estúdio e que, naturalmente, também abriu o concerto, é uma potentíssima música de abertura, ideal para instalar logo um clima de entusiasmo ardente. Pelo meio surgiram composições que resultam claramente melhor quando sentidas no conforto do lar (“No Prizes”, por exemplo, perdeu alguma da sua doçura comovente neste contexto) misturadas com outras que parecem ganhar nova vida em palco( a doce e luminosa “Nothing to Prove” ou a vigorosa “More Pressure”, que talvez pelo seu caráter fortemente dançável proporciona uma dose robusta de energia libertadora ao vivo). Quando toda esta recriação da obra terminou, pouco mais de 40 minutos tinham passado, mas o concerto rapidamente evoluiu para uma espécie de compilação dos melhores momentos de um passado recente, quase como uma recordação do caminho percorrido até aqui. Foi aí que músicas como “Europe Is Lost”, “Ketamine for Breakfast”, “Firesmoke” e, a fechar de forma definitiva, “People's Faces” ecoaram pelas paredes negras de uma sala lotada, terminando com uma ovação sentida por parte da audiência - um gesto que provou, como se dúvidas houvesse, que Kae Tempest é das mais talentosas personalidades da música britânica atual. Esperemos é que regresse em melhores condições, para protagonizar um concerto não apenas bom, como foi este, mas realmente excelente.
Foto: Kae Tempest por Wolfgang Tillman
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quarta-feira, 04 dezembro 2024